terça-feira, 22 de junho de 2010

Mini conto- arquivo: Insensatez





Insensatez



"Venha, estou te esperando. Desça a Montenegro, entre na terceira, à
direita. É um prédio antigo e pequeno no meio da quadra", disse ele.
Eu fui, como sempre. Obedeço aos homens.
Tinha pressa. As mãos suavam ao descer do ônibus no ponto indicado.
Lembro de um sonho em que deslizo pela Rua Prudente de Moraes deserta,
desejando alar ao seu encontro.
Na esquina, um bar, mais à frente, duas vilas. Adoraria morar no bucolismo de
um espaço silencioso, com flores nos jardins. Com este olhar, me deparei com
o prédio dele.
Anoitecia.
Bati à porta, alguém tocava violão, abafando meus toques. Repeti as batidas
com mais força. O som do violão cessou. Ruídos de cadeiras e vozes. Ele abre
a porta no momento em que eu inspirei fundo, aflita, pensava o que fazer se
não me ouvissem.
Havia homens espalhados pela sala, alguns no chão em almofadas, eu era a
única mulher. Um deles me olhou com certo desdém, por pouco não me sinto
intrusa, apenas porque os olhos dele me observavam e sorriam.
Minutos depois ficamos a sós entre copos e cigarros espalhados sobre o
piano, chão, janela. A pequena sala, que dava para a frente do prédio,
rescendia a cigarros. Comecei a juntar copos e cinzeiros. "Deixe, depois eu
limpo", ele disse. "Limpamos agora, é melhor", respondi.
Eu precisava arranjar coisas para fazer. Não queria que ele percebesse
minhas mãos frias e úmidas. Queria mais tempo para me acostumar à idéia de
estar ali.
Na pia cheia de copos, garrafas vazias, um gato cinza de olhos azuis muito
claros tentava subir.
Ele veio por trás e beijou minha nuca. Me desvencilhei caminhando em direção
à janela. "Veja o Cristo, dá para vê-lo, não sei até quando..."
Eu senti seu hálito de álcool e cigarro. Aquele cheiro me excitava.
Segurou meu rosto entre as mãos em taça, beijou meus lábios sorvendo meus
mistérios. De olhos fechados, eu adivinhava o rosto que amei no primeiro
encontro. Abri os olhos para conferir. Seus braços me envolviam como asas.
Aos poucos fomos nos afastando da janela. Debruçando-se sobre mim, deitou-me
no sofá, abrindo, com dedos ágeis, caminho para a minha entrega plena.
Um dia ele viajou, precisava ir a trabalho, disse. Não voltou. Eu chorava
desolada. Enviei uma carta, por um amigo comum, onde dizia:
"Desde sua partida minha vida é só tristeza e melancolia. Não sei viver
assim. Volte".

Meses depois recebo um telefonema. Era Vinícius, dizia que tinha algo para
mim. Fui até lá e ele me cantou, jamais esquecerei, esta música, como um
recado do Tom:
"Chega de saudade
... Não quero mais esse negócio de você longe de mim,
Vamos deixar esse negócio
De você viver sem mim"...

Ele voltou, anos depois. Soube pelos jornais.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Miniconto: Pênalti- arquivo




Pênalti*


Quando Maria chegou, o bar já estava cheio, não havia mais lugares, todas as mesas ocupadas. Excitadas, as pessoas falavam alto, gritavam pedindo mais chope. Os garçons, suados, entre as mesas, misturavam-se ao bando que buscava uma cadeira extra. Cumprimentou o dono:
-"E aí, seu Antônio, arranja uma cadeira para mim?" Ele virou-se e trouxe um banquinho de trás do balcão.
Ela sentou num canto de onde via a TV de longe, não fazia questão de acompanhar o jogo, "ficar só em dia de jogo é barra", pensava. Os patrões viajaram para a praia, nem ver a TV da sala podia, não sabia ligar.
O jogo começou, fez-se silêncio, de vez em quando uns gritos de torcida. Lá fora, a rua deserta, não entrava ninguém. A vida havia parado, só o jogo importava, menos para ela, que gostava do calor, do cheiro de gente, fazia tempo não sentia ninguém por perto.
1x1 e veio o intervalo. As pessoas em direção ao banheiro esbarravam nela. Um homem tropeçou no seu pé, abriu um sorriso e disse:
- "E ai? Torcendo muito?"
Ela sorriu, tímida, ele a olhou de alto a baixo, desnudando-a. Sentiu que corou. Ele deve ter percebido e gostado, ficou por ali ao sair do banheiro.
Devia vir da praia, tinha a pele curtida, pernas num short curto.
Quando o jogo recomeçou, ele encostado no balcão, muito perto, a olhava insistentemente. Ela já não via mais nada, apenas o homem se chegando. Ele sentou ao seu lado, encostava a coxa na perna dela. Ela levantou-se, pensou na sua magreza, no corpo que ninguém olha, pediu mais chope no balcão, voltou a sentar, encolhida no banco.
O homem não tirava o olho dela, já não via o jogo.
Num certo momento todos gritaram:
- "Tem que ser pênalti, é pênalti", o homem a puxou para o banheiro, ela não resistiu, sentiu o cheiro forte, acre, enquanto ele a levantava, empurrava contra a parede. Fechou a sua boca num beijo de língua que lhe tirou o fôlego, enquanto levantava sua saia e arrancava com violência a calcinha.
Ela esqueceu o cheiro. Gozou gemendo num grito abafado pelo beijo do desconhecido.

*Este conto está no livro "A cabeça do futebol". Pode ser encontrado na Livraria Cultura.

Miniconto- Dia de jogo do Flamengo




Pediu:
- Por favor, pare de arrastar este chinelo, veja o jogo sentado!
Ele fingiu não ouvir, continuou andando de um lado para o outro falando sozinho, xingando os jogadores do time adversário.
Ela, em desespero, ajoelhou-se e arrancou os chinelos daquele pé odiado. Jogou-os pela janela, agarrou seus próprios cabelos, batendo a cabeça na parede.
Ele fingiu não ver.
Ela saiu da sala em direção ao quarto. Abriu as persianas velhas com dificuldade.
Ele ouviu o estrondo do corpo no chão, levou um susto, foi até a janela.
"A esta hora e ela ainda veste roupa de dormir"- pensou.

Miniconto- arquivo- Dia de jogo I


Dia de jogo I



Pediu: “Por favor, pare de arrastar este chinelo, veja o jogo sentado!”
Ele fingiu não ouvir.
Ela, em desespero, se ajoelhou e arrancou violentamente os chinelos daqueles pés sujos. Jogou-os pela janela. Agarrou seus próprios cabelos, batendo a cabeça na parede.
Ele fingiu não ver.
Ela tirou suas próprias roupas se lanhando. Saiu nua pelas ruas.
Ele deu graças a Deus.

Mini conto 03- arquivo: O homem menos estranho






O homem menos estranho


Pega o primeiro ônibus que pára no ponto, o vento corta seus lábios. Há dias não vê a rua, não quer.

O ônibus está abafado, mas gosta daquele cheiro de gente, tanto tempo não vê gente. Havia lugares vazios nos últimos bancos, escolhe o que tem o homem menos estranho e senta, perna encostada na perna do homem, nem viu a cara, não importa. A perna revestida de seda dá sensação de segunda pele, desliza, sente prazer em roçar disfarçadamente no estranho. Fecha os olhos, inspira o ar misto de cheiros. Final do dia, cada cheiro uma história, de olhos fechados adivinha que o homem ao lado tem mulher e filhos a espera.

Faz isto sempre, pega um ônibus qualquer, escolhe os dias cinzentos, aqueles que intui não suportará ficar tão só. Estar colada ao homem a esquenta, ele não se afasta, mas pressiona mais a coxa, coxa apertada contra coxa. Finge não sentir a mão que sobe pela sua perna, deixa que o homem a toque, se arrepia, não consegue se mexer, é preciso dizer não, abre os olhos, ele se aproxima e a beija violentamente, morde, machuca, ela não sente prazer, nem medo, apenas vida.


Em italiano:

L’uomo meno strano


Lei prende il primo bus che sosta in quella fermata, il vento le taglia le labbra. Da giorni non guarda la strada, non vuole.
Il bus è affollato ma le piace l’odore della gente, da tanto non vede nessuno. Ce n’erano dei posti vuoti in fondo, ma sceglie quello dove si trova l’uomo meno strano e si siede, la gamba sfiora quella dell’uomo, non lo guarda nemmeno in faccia, non importa.
La gamba vestita di seta le dà la sensazione di una seconda pelle, scivola, sente piacere nel toccare leggermente la gamba di quello strano, fingendo di sfiorarlo per caso.
Chiude gli occhi, ispira l’aria mescolata di odori.
Finale di giornata, ogni odore una storia, con gli occhi ancora chiusi, indovina che l’uomo al suo fianco ha moglie e figli che l’aspettano.
Fa sempre così, prende un autobus qualsiasi, sceglie le giornate più grigie, quelli in cui intuisce che non sopporterà stare da sola. Così vicina a quell’uomo si sente riscaldata, lui non si ritira anzi, fa pressione nella coscia, coscia aperta contro coscia. Finge di non sentire la mano che sale per la sua gamba, lascia che l’uomo la tocchi, rabbrividisce, non riesce muoversi, bisognerebbe dire di no, apre gli occhi, lui si avvicina e la bacia con violenza, morde, schiaccia, lei non sente piacere, né paura, si sente soltanto viva.


Este conto foi seleccionado num concurso de minicontos no site italiano www.domist.net e gentilmente traduzido por Eliude Santana, não está mais online- foi em 2005.

Miniconto V: No elevador





No elevador


Arranca as roupas em fúria- sai pelo corredor ainda adormecido.
O vigia a encontra caída no elevador. Ela dorme.



Foto by Björn Oldsen