terça-feira, 23 de novembro de 2010

Às quatro e dez- corrigido(hora)

Olhou o relógio atrás do balcão, três e meia, ele não viria mais. As mesas vazias, a tarde morna. O garçom, recostado no portal, olhava para ela e para a rua. Pediu uma água mineral. "Sem gelo, por favor", disse. Marcava quatro e cinco, quando entrou uma mulher. Escolheu a mesa do canto oposto, pendurou a bolsa na cadeira, enquanto sentava jogou o cabelo para trás. Rescendia a perfume.
Às quatro e dez, entrou um homem. Ela levantou-se, beijaram-se na boca. As roupas discretas contrastavam com as coloridas dela. Ele sentou, aproximou a cadeira, abraçou-a. Sorriam e beijavam-se. Os dois estavam com os lábios vermelhos e lambuzados de batom.
Os olhos da mulher que esperava turvaram. Disfarçou, abriu a bolsa, pegou o telefone- sem créditos- leu: “Querida, ainda estou na correria, mais tarde, passo na sua casa.”. Olhou para o garçom. Fingiu mandar uma mensagem.
Não viu quando anoiteceu, nem quando o casal saiu. O restaurante estava cheio quando sentiu a perna adormecida ao levantar-se.
Seguiu à direita em direção ao mar.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Fragmentos




Fragmento*

Na janela
                                                                                    
Menina paralisada, atrás do vidro, sofria.
Agora, abro o vidro. Jogo-me alada .



 A palavra

 “Coisa de prostituta! Faz engravidar!”. Ressoa nela a voz aguda da mãe.
Aos sete anos, mal entendia a fúria da mãe. Sentada de castigo na mesinha de cabeceira- pernas soltas no ar- chorava. Pouco depois seguiram para outra cidade.
Não virou puta. Do ventre, antes seco, pariu um dia um filho bastardo, num aborteiro. Sentiu alívio.


Confissão

Menina, uniforme azul e branco, sapatos apertados de verniz, atravessava a praça. A freira puxava a fila indiana de meninas silenciosas - olhos no chão.
“Eu pecador me confesso, eu pecador me confesso...”, ecoava em sua mente. Segurando o riso, contava os passos olhando a perna torta da menina da frente.
- Padre, quero me confessar.
- Quais os seus pecados, minha filha?
- Tive maus pensamentos.
 Urgia rezar mais.



O pai

Quando o pai mandou, aos gritos, que se vestissem e pegassem as roupas todas, ela não entendeu o que acontecia.
Caminharam em silêncio até o ônibus. A mãe chorava baixinho, cabeça baixa, mãos ocupadas por sacolas cheias.
Menina ainda, segurou firme a mão do irmão.
Desceram da condução com o pai quase os empurrando.
Na porta, o avô disse:
- Te entreguei um, você volta e são três. Fico com minha filha, você leva as crianças.
O pai responde:
 - Se não os quer, então os mate.
É a última lembrança que tem do pai.




Embaçado

No banheiro embaçado minha mãe me banhou. Esfregava meu corpo franzino com força. Chorava sem parar. "Lave bem aí embaixo, senão fica com mau cheiro", disse me entregando uma bucha. Esfreguei até doer. Chorei sob a água até ela me gritar: Saia dai, menina! Chega!

A primeira vez que fui para a cama com um homem, diante da minha dor, ele disse: "Precisa ir a um médico, está machucada, não é normal".
Em casa, tomei coragem e me olhei com um espelho. Desde então gosto de me tocar. 
Minha mãe me odiaria se me visse com um homem. Gosto de homens, deixo que me conduzam. Fecho os olhos e deixo que me amem.


No magazine

Fica encantada ao se ver no espelho com o vestido da loja.
Dança até cansar.
Com uma tesoura faz pequenos cortes nas roupas penduradas.
Ao bater a porta, sabia que não haveria retorno.


O jantar

Dormia quando ele chegou de madrugada. Da porta, disse: Anda, tenho fome. Sonada, levantou. Encheu a panela com água, colocou no fogão e voltou a cochilar enquanto fervia.
Ele a viu de bruços na mesa, pegou a lata de óleo e a despejou sobre sua cabeça.
- Sua vaca, levante!
Ela obedeceu em silêncio. Chorando baixinho entrou no chuveiro quente. Lembrou da mãe. Chorou, mais ainda. Levou tempo para tirar o óleo, o ódio e o medo.
Quando saiu, ele já havia comido. Estava à sua espera, pronto.
Acordou às quatro, ele ressonava de boca aberta. “Desgraçado”.
Antes das cinco estava pronta. Mochila segurando a porta da rua entreaberta. Faca na mão.
Ela saiu de óculos escuros - amanhecia.

*Este conto enviei para o concurso Off-FLIP- nada :( enfim, é assim, não é?








sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Miniconto: Eu?




-Você me exaspera, ele diz.
Ela olha impassível.
Diz: Eu?
Poderia parecer irônica, mas se percebe uma alteração na voz, agora trêmula.
- Me diga o que ‘acontece conosco’? Ele diz alterado.
Ela cai num riso histérico. O homem da mesa ao lado olha e sorri cúmplice.
Ele enrubesce. Olha para ela quase engasgando.
- Pare com esta cena ridícula. Vamos sair daqui.
Levanta-se e a segura pelo braço.
Ela para de rir, faz um gesto para se desvencilhar da mão firme dele.
Sai na frente, enquanto ele paga a conta no balcão.
Quando ele sai olha em todas as direções.
Ela sumiu.

Vingativa

Vingativa


A mão fria dele cobriu a minha. Procuro sempre escondê-las- sempre desejei outras, mais bonitas- dedos longos.
Distraída, enquanto lhe contava da viagem, deixei-as sobre a mesa.
Ele me interrompendo perguntou, ar curioso:
- E a revista, você contínua escrevendo e tentando?
- Nunca mais a comprei, respondo.
Ele, que sentara à minha frente, curva-se sobre a mesa sorrindo e me toca dizendo:
- Descobri que é vingativa.
Recolhi a mão num gesto rápido e confirmei- olhos nos olhos.
- Cuidado comigo.

Ele agora acredita.

As quatro estações

Outono



Chovia muito, chuva fina e vento. Ao sair da vila, uma rajada quase a faz voltar.

Domingo é dia de ler jornal - o pai a ensinou. Mesmo velhinho, andava com um jornal debaixo do braço. Pensava nele, quando se chocou com um homem que saía da banca.

- Perdón, ele disse num largo sorriso.

Comprou o jornal apressada e buscou com o olhar o homem na praça. Havia sumido.

Algumas semanas depois, perguntou ao jornaleiro:

- Aquele homem estrangeiro, o senhor conhece?...

- Ah, o espanhol? Está viajando.

Não teve coragem de perguntar mais.

Passou a olhar as pessoas na rua.





Inverno



É hora da Ave Maria, o sino da igreja ecoa no peito, dói.

Ardem as costas, desde a manhã naquela cadeira.

No banho, alisa a tez macia, sente prazer.

Na sala escura, alonga a coluna no tapete.

Os pássaros se aquietaram. Entram ruídos dos vizinhos.

Uma angústia a invade, não há nada a fazer, resta- lhe a espera. Quer apenas chorar.

Ao sentir fome, levanta-se: é preciso comprar pão. Sai sem disfarçar os olhos inchados. Caminha, passos lentos, até a esquina. Ao entrar, vê o estrangeiro no balcão. Aproxima-se, quer vê-lo de perto, senti-lo. Quando ele sai, dirige-se à porta, deseja seguir seus passos rápidos, mas para, e o vê sumir na noite.

Agora sabe que ele voltou.





Primavera



Acordou, abriu as janelas, o sol batia no assoalho brilhante. Deitou no chão fresco e foi se despindo até ficar nua.

Levantou quando o sol - num feixe vibrante - a cortava ao meio. Em vez de colocar o vestido desbotado, escolheu outro - de uma das freguesas. O mais bonito: de seda preta, com decote e fenda do lado esquerdo da saia. Calçou o par de sandálias de saltos altos, sujas de mofo. Passou batom, coloriu as faces desbotadas.

Olhou-se no espelho e tentou dançar sozinha.





Verão



Aos domingos, na praia, catava pedrinhas. Preferia as transparentes.

Naquele dia, um homem se aproximou e lhe deu uma pedra escura. Gostou do rosto.

Seguiram pela areia lambida. Despediram- se com um “até domingo”. Ela sentiu- se diferente. Há muito não falava com homens.

Esperou ansiosa o fim de semana. Da calçada, viu o homem à beira- mar. Foi em sua direção, vacilante. Seguiram caminhando e pegando as pedras. Falavam pouco, ela desacostumada, ele só dizia o essencial.

No terceiro domingo, ele entrou em sua casa. Ela sabia o que viria.

Amaram-se no chão da sala.
Enquanto ele se vestia, pegou um copo de conhaque, colocou as mais belas pedrinhas dentro. Entregou- lhe. Ele não agradeceu, apenas a fitou com olhos surpresos.

Ao se despedirem, ele disse: “Até mais”. Sentiu-se estranha. Intuiu algo. Mas, e se ele voltasse à noite?

Nada sabia dele, nem o nome.

No domingo seguinte, esperou-o até a maresia envolvê-la e sentir frio.

Não se importa mais com as pedras, às vezes curva-se, pega uma, a observa na mão, então a devolve para o mar.

Talvez no próximo verão...
Fragmentos

Na janela

Menina paralisada, atrás do vidro, sofria.
Agora, abro o vidro. Jogo-me alada .


A palavra

“Coisa de prostituta! Faz engravidar!”. Ressoa nela a voz aguda da mãe.
Aos sete anos, mal entendia a fúria da mãe. Sentada de castigo na mesinha de cabeceira- pernas soltas no ar- chorava. Pouco depois seguiram para outra cidade.
Não virou puta. Do ventre, antes seco, pariu um dia um filho bastardo, num aborteiro. Sentiu alívio.


Confissão

Menina, uniforme azul e branco, sapatos apertados de verniz, atravessava a praça. A freira puxava a fila indiana de meninas silenciosas - olhos no chão.
“Eu pecador me confesso, eu pecador me confesso...”, ecoava em sua mente. Segurando o riso, contava os passos olhando a perna torta da menina da frente.
- Padre, quero me confessar.
- Quais os seus pecados, minha filha?
- Tive maus pensamentos.
Urgia rezar mais.


O pai

Quando o pai mandou, aos gritos, que se vestissem e pegassem as roupas todas, ela não entendeu o que acontecia.
Caminharam em silêncio até o ônibus. A mãe chorava baixinho, cabeça baixa, mãos ocupadas por sacolas cheias.
Menina ainda, segurou firme a mão do irmão.
Desceram da condução com o pai quase os empurrando.
Na porta, o avô disse:
- Te entreguei um, você volta e são três. Fico com minha filha, você leva as crianças.
O pai responde:
- Se não os quer, então os mate.
É a última lembrança que tem do pai.


Embaçado

No banheiro embaçado minha mãe me banhou. Esfregava meu corpo franzino com força. Chorava sem parar. "Lave bem aí embaixo, senão fica com mau cheiro", disse me entregando uma bucha. Esfreguei até doer. Chorei sob a água até ela me gritar: Saia dai, menina! Chega!

A primeira vez que fui para a cama com um homem, diante da minha dor, ele disse: "Precisa ir a um médico, está machucada, não é normal".
Em casa, tomei coragem e me olhei com um espelho. Desde então gosto de me tocar.
Minha mãe me odiaria se me visse com um homem. Gosto de homens, deixo que me conduzam. Fecho os olhos e deixo que me amem.


No magazine

Fica encantada ao se ver no espelho com o vestido da loja.
Dança até cansar.
Com uma tesoura faz pequenos cortes nas roupas penduradas.
Ao bater a porta, sabia que não haveria retorno.


O jantar

Dormia quando ele chegou de madrugada. Da porta, disse: Anda, tenho fome. Sonada, levantou. Encheu a panela com água, colocou no fogão e voltou a cochilar enquanto fervia.
Ele a viu de bruços na mesa, pegou a lata de óleo e a despejou sobre sua cabeça.
- Sua vaca, levante!
Ela obedeceu em silêncio. Chorando baixinho entrou no chuveiro quente. Lembrou da mãe. Chorou, mais ainda. Levou tempo para tirar o óleo, o ódio e o medo.
Quando saiu, ele já havia comido. Estava à sua espera, pronto.
Acordou às quatro, ele ressonava de boca aberta. “Desgraçado”.
Antes das cinco estava pronta. Mochila segurando a porta da rua entreaberta. Faca na mão.
Ela saiu de óculos escuros - amanhecia.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Madrugada

Foto daqui



Madrugada


O cão ladra à noite. Assustada olha o jardim. Nada. Olha o quintal. Nada. O cão late insistente.
Tranca a porta do quarto. Dorme encolhida.

Pela luz solar sabia que passava das nove. Procurou não demorar para descer. Abriu a porta da frente com cuidado. Nada mudara. Caminhou à direita no estreito corredor. Ali jazia um homem- a camisa xadrez aberta no peito, a calça rota mostrava um ventre inchado. Não sabe por que não teve medo. Passou ao lado do corpo com cuidado para não esbarrar no braço frouxo. Percebeu que respirava. Sentiu alívio.

Antes de ligar para a emergência, vestiu uma roupa de sair, passou batom e tomou o café da manhã na sala.