domingo, 31 de julho de 2011

Microcontos- os primeiros 2005

Microcontos, cada linha um conto



O sangue espirrou, vi, desta vez, os seus olhos suplicarem.


Deu um grito gutural, da boca saía uma espuma branca. Era tarde.


Quando a onda me engoliu, pedi perdão. E não socorro.


Vi o pânico nos olhos, tomei seu corpo com mais desejo. Fundo.


Escondi a faca de cortar carne. Esta seria sua última trepada.


Despertei suja de sêmen, corri a mão no lençol frio. Calafrio.


Cerrei os olhos, úmida e quente. Deixei que fosse até minh'alma.


Rubro e úmido meu sexo aguarda o teu, buscando outros sexos.


Dói áspero teu sexo, me rasga. Finjo prazer para te esfaquear pelas costas.


Quis fazer das pernas tesouras- cortar- tua força venceu.


Arranhado diz rindo: "Foi você". Amanhã não rirá lanhado por mim.


Te encontro pronto, teus pés em oferenda. Lírios brancos. (baseado no livro de Raduan Nassar. "Um copo de cólera”.


Escuto passos, não me volto. Tuas mãos, taças, aquecem meus seios.


"Eu te amo", dizes. Teus olhos negam. Minha mão constrita te afasta.


PS: Estes micros eu fiz em 2005, para o projeto de Nemonox Casa das mil portasCada micro deveria ter até 50 caracteres.

Miniconto: Na vitrine- revisto, pero...


Na vitrine


Com o coração descompassado atravessou a rua correndo. Um motorista freou, buzinou irritado. Era ele do outro lado da rua, sabia. Vestia uma camisa xadrez por dentro da calça e cinto de couro. “Está diferente, mas é ele”. Temia que desaparecesse. Diante de uma vitrine, tocou levemente o seu braço. Ele virou-se, disse desconcertado:

- "Minha mulher está ai dentro, não posso falar com você". Virou-se e dirigiu-se à porta de entrada.

Olhar turvo perdido nas manequins, não via nada. Saiu, passos lentos, esbarrando nas pessoas.

Na esquina, no meio fio, alguém perguntou se precisava de ajuda.

- “Não obrigada”. Não queria nada.

Tempo interminável até a penumbra da sala.

Adivinha uma jovem ao seu lado que o obriga a se cuidar. Ela não saberia dizer: "Não beba mais por hoje". Bebiam juntos, se amavam embriagados, jurando amor eterno.

Deixou-se estar no sofá até que o cão viesse, esfomeado, pedir comida. Ela não precisaria comer estes dias, sabia.



domingo, 24 de julho de 2011

Na palma da mão

Na palma da mão


Amanheceu tristonha. Tomava o café da manhã pensativa quando ouviu um grunhido. Camundongo? Pássaro? Um filhote de rolinha se debatia no chão da cozinha. A gata deve ter trazido, pensou.
Observou o pássaro na palma da mão- tão frágil. Levou-o até o muro onde voou para o jardim vizinho- lá estaria a salvo.
Minutos depois o filhote jazia no chão da cozinha. Pegou-o sem vida. Precisaria enterrá-lo, mas ainda estava tépido. Virou-o na mão, na tentativa de que revivesse. Nada.
Sob a bananeira, enterrou-o depois de segundos de estranheza, ele ainda estava quentinho.

PS: Fiz antes uma crônica, está aqui.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Seis da tarde- miniconto

Seis da tarde


O ônibus estava lotado. Um menino cedeu o lugar para ela, a mãe disse: “Ande, levante, não vê que a mulher precisa sentar?”. O marido permaneceu em pé, recostado na janela. Tentou abrir a parte de cima, não conseguiu. Olhou para ela e fez um gesto de cumplicidade- não havia nada a fazer.
Ela ajeitou as sacolas no meio das pernas. Sentia o cheio forte da mulher ao lado, misto de suor com gordura- deve ser cozinheira, pensou.
O ônibus parava a cada quadra no início da viagem. O motorista gritava: “Mais para trás ai, faz favor!” . Amontoavam-se.  Ela se encolhia. Um homem com uma pasta encostou o corpo no ombro dela. Ela olhou para o marido, ele fez um gesto com a cabeça e ela se ofereceu para segurar a maleta. Pesava. “Deve ser representante de remédios, está arrumadinho”.
Uma hora mais tarde o ônibus esvaziava a cada ponto. O marido sentou-se ao seu lado. Ela, imediatamente, deitou a cabeça no ombro dele, sentiu seu cheiro e dormiu.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Os pássaros em 'V'- miniconto









Os pássaros em V



Faziam, há dias, o trajeto em silêncio. Ela sabia que dissera algo que o tocou profundamente e feriu. Caminha e tenta lembrar o que disse. Viveu num turbilhão. Sentia-se 'enlouquecida', louca de amor por ele. Como ele recusava este amor pleno? Ela se perguntava, e tentava, sem saber bem como, que ele lhe dissesse que também a amava. Ele calara. Nada o tira do silêncio, é preciso saber esperar.

Andavam pelas ruas de sempre. Ela o espera, desde que se conheceram, numa esquina. Ele vem de algumas quadras adiante.

O primeiro encontro foi ao acaso, ela tropeçou, derrubou livros e papéis, ele estava próximo, veio ajudá-la. Caminharam então na mesma direção.

- São cartas?

- Sim, estou compilando algumas de escritores famosos para um livro.

- Interessante...

O resto do trajeto foi em silêncio, quebrado por ela quando se aproximava de sua casa:

- Moro neste prédio. Você mora aqui perto?

- Sim.

Despediram-se com um aperto de mão.

Ela não dormiu naquela noite, acreditou que algo novo a tiraria do vazio.

À noite jogou o 'Tarot' que guardava há anos numa gaveta: "O enforcado", "O ermitão", "A estrela". Tirou mais uma vez: "A força".

Sabia que iria sofrer por este amor.

No dia seguinte saiu na mesma hora. À tardinha viu quando ele se aproximou buscando por ela na esquina. Cumprimentaram-se sem aperto de mão, nada. Caminharam em silêncio. Quando chegavam perto do seu prédio, ele disse:

- O que você faz aos sábados?

Nada que fizesse teria importância agora, estaria livre para ele, ela pensou.

Encontravam-se aos sábados na casa dela. Ele tinha mulher e dois filhos. Depois de três anos, ela mal sabe da vida dele, ele não conta, nem ela quer saber. Espera que um dia ele fique para dormir.

Agora caminha com ele ao lado. Conhece e ama aquele corpo mais do que o dela, adivinha cada traço. Deseja tocá-lo. Caminha roçando nele, que não se afasta, mas também não a toca, como costuma.

Há dois sábados ele não vem. Inventa desculpas, ela sabe. É difícil esperar. Esperar que ele volte a desejá-la.

Ele, de repente, olhou para o céu e disse:

- Olhe, veja os pássaros! Que lindos! Formam um V!

- São lindos. Há anos não via pássaros juntos assim...

Olharam-se e riram.

Ela sabia que neste sábado ele viria. Sabe que ao sentir o corpo dele, solto e pesado, sobre ela, uma lágrima brotará nos seus olhos. Ele não perceberá e é melhor assim. Estará sorrindo nos próximos dias.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

A ponta/ sem revisão






O guarda- chuva


Do banheiro escutou a campainha tocar três vezes e as batidas insistentes na porta. Era ele, sabia. Passava das três horas quando desligou a TV.
O terno branco ainda reluzia. O rosto dele, também branco, a assustou. Não precisou perguntar, ele disse:
- Acabo de matar um homem que me seguia, um assaltante.
- Como?
- Com o guarda- chuva.
- Mas...
- Com a ponta do guarda- chuva.
Abraçou-a fortemente. Tremia.
Ela silenciou. Esperou que parasse de tremer e disse:
- Tome um banho morno, está suando frio.
O terno jogado na cadeira não tinha mancha de sangue. Nada.
Do banho ele foi direto para a cama.
Esta noite não a desejou como todas as noites.
Ela sentiu alivio.
Nunca mais falaram sobre aquela noite.

domingo, 3 de julho de 2011

Miniconto: Domingo no café da manhã


Domingo no café da manhã



- Olhe o que diz aqui sobre você.

- Sobre mim? Onde?

- Aqui no horóscopo da Linda.

- Ah!...Que Linda?

- Linda Goodman, aquela astróloga famosa, comprei ontem, você estava distraído entre seus livros.

Ele olhando por cima dos óculos:

- E você acha que eu sei quem é esta fulana?

- Ela é ótima, acerta tudo.

Ele já voltou ao jornal.

- Todo geminiano é um enigma. Escute.

- Hum? Enigma?

- É, você é um enigma.

Ele dá uma gargalhada.

- Eu sou o que sou, você não precisa me decifrar...

- E você acha que eu consigo conviver com um enigma? Dormir com um?

- Por mais que tente me decifrar, nunca me alcançará. Já devia saber disto.

Ele está lendo, a cara afundada no jornal. A mandíbula contraída.

- Imprevisível. Sabe esconder o que realmente sente. Viu?

- O que?

- Não diz o que sente.

- E você precisa que eu diga?

- Não tente se aprofundar muito nele.

Ele sem levantar os olhos do jornal:

- Fico admirado de você acreditar nestas baboseiras...afinal é uma mulher inteligente.

- Ah! Sabe o que mais? Diz que você pode sair para comprar jornal hoje e voltar daqui a três dias. Que eu nunca sei onde você está, porque está em vários lugares ao mesmo tempo. Viu?

- Viu o quê, madame? Por acaso já sai para comprar algo e não voltei?

- Voltou sim, mas quantas vezes viaja e não me dá notícias.

- Você sabe onde estou. E sabe muito bem, que eu detesto me sentir controlado.

- OK. Mas não tenho culpa, sou virginiana, controladora, mon cher.

- Escute isto: os nascidos em gêmeos precisam de dois amores e não exatamente de duas mulheres. Não é um enigma?

Ele levanta os olhos do jornal, mas não diz nada. Volta para a leitura.

- Não vou mais te perturbar, escute só mais esta: Ele terá sempre compulsão em agir de modo exatamente oposto aos seus verdadeiros desejos.

Ele se levanta, olha enviesado e vai em direção à porta.

- Vai sair?

- Vou, quem sabe volto daqui a três dias. Tchau.

sábado, 2 de julho de 2011

Miniconto: Em Paris II/ sem revisão

Em Paris II


No ônibus chorava olhando a janela- disfarçava. Por que se entristecera? Queria chegar e contar para ele o que viveu naqueles dias.
À sua frente um homem a fitou e esboçou um leve sorriso. Chorou mais ainda.
Não haveria ninguém à sua espera quando chegasse.