terça-feira, 24 de maio de 2011

O homem menos estranho- L'uomo meno strano(tradução)






O homem menos estranho


Pega o primeiro ônibus que para no ponto, o vento corta seus lábios. Há dias não vê a rua, não quer.
O ônibus está abafado, mas gosta daquele cheiro de gente, tanto tempo não vê gente. Havia lugares vazios nos últimos bancos, escolhe o que tem o homem menos estranho e senta, perna encostada na perna do homem, nem viu a cara, não importa. A perna revestida de seda dá sensação de segunda pele, desliza, sente prazer em roçar disfarçadamente no estranho. Fecha os olhos, inspira o ar misto de cheiros. Final do dia, cada cheiro uma história, de olhos fechados adivinha que o homem ao lado tem mulher e filhos à espera.
Faz isto sempre, pega um ônibus qualquer, escolhe os dias cinzentos, aqueles que intui não suportará ficar tão só. Estar colada ao homem a esquenta, ele não se afasta, mas pressiona mais a coxa, coxa apertada contra coxa. Finge não sentir a mão que sobe pela sua perna, deixa que o homem a toque, se arrepia, não consegue se mexer, é preciso dizer não, abre os olhos, ele se aproxima e a beija violentamente, morde, machuca, ela não sente prazer, nem medo, apenas vida.


Em italiano*:


L'uomo meno strano


Lei prende il primo bus che sosta in quella fermata, il vento le taglia le labbra. Da giorni non guarda la strada, non vuole.
Il bus è affollato ma le piace l’odore della gente, da tanto non vede nessuno. Ce n’erano dei posti vuoti in fondo, ma sceglie quello dove si trova l’uomo meno strano e si siede, la gamba sfiora quella dell’uomo, non lo guarda nemmeno in faccia, non importa.
La gamba vestita di seta le dà la sensazione di una seconda pelle, scivola, sente piacere nel toccare leggermente la gamba di quello strano, fingendo di sfiorarlo per caso.
Chiude gli occhi, ispira l’aria mescolata di odori.
Finale di giornata, ogni odore una storia, con gli occhi ancora chiusi, indovina che l’uomo al suo fianco ha moglie e figli che l’aspettano.
Fa sempre così, prende un autobus qualsiasi, sceglie le giornate più grigie, quelli in cui intuisce che non sopporterà stare da sola. Così vicina a quell’uomo si sente riscaldata, lui non si ritira anzi, fa pressione nella coscia, coscia aperta contro coscia. Finge di non sentire la mano che sale per la sua gamba, lascia che l’uomo la tocchi, rabbrividisce, non riesce muoversi, bisognerebbe dire di no, apre gli occhi, lui si avvicina e la bacia con violenza, morde, schiaccia, lei non sente piacere, né paura, si sente soltanto viva.

*Agradeço a tradução de Eliude Santana que o fez gentilmente. Contardo Calligaris disse estar perfeita- como sabem- ele é italiano.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Natal na Vila- Miniconto



Natal na Vila
  

O silêncio, tão desejado, pesa nesta época. Os vizinhos saem com as crianças para longos dez dias de férias, apenas ela fica na vila. O irmão perguntou se queria viajar, já conhecia a resposta, difícil ela sair, ainda mais nestes dias. Depois da morte da mãe, nem ceia não faz, apenas um panetone, um presunto assado e frutas do mercado da esquina. Varia as frutas, afinal é dia de festa. O presunto assa com cuidado, regando para não ressecar.
Não sente falta da família, antes ficava mal humorada, agora não precisa mais fazer de conta. 
Gosta da solidão, não gosta da falta dos ruídos conhecidos. Os pássaros sumiram por causa da chuva, a praça esvaziou-  o povo desaparece como mágica. Dia 25, então é pior, ninguém nas ruas, tudo fechado, todos em casa. Quando a mãe era viva, levava a mãe para caminhar, iam até a praia dar uma volta- ela com as pernas inchadas de tanto ficar em pé na véspera-  caminhava lentamente. Sentavam num banco da praia a olhar o mar.
Não tem saudades, fica com raiva quando se vê como a mãe, azeda. Apenas lembra.
Amanhã, já decidiu, fará diferente, vestirá a roupa nova que fez, pegará um ônibus e fará um longo passeio pela cidade.


domingo, 15 de maio de 2011

O casaco que ele veste

Além dela, havia uma mulher muito magra, lábios finos, cabelos mal tingidos, e ele. Ele vestia um agasalho, destes com fecho na frente. Tinha os olhos grudados num livro. Ao abri-lo, deixou cair um marcador. Ela desejou pegar, mas não teve coragem. Observou-o atentamente. Ele não percebia a presença dos outros. O cabelo grisalho, sem corte, o rosto marcado pelo nariz e rugas de expressão. Usava óculos para leitura. A testa, às vezes, franzia, ou a boca entortava, num sorriso esgar. Há meia hora estavam ali. Imaginava qual seria o problema dele. Pensava em como alguém pode estar tanto tempo entre outras pessoas e não vê-las. Poderia ser um arrogante, daqueles que não se misturam e fingem estar sós. Mas, algo nele a comove. O casaco que ele veste lhe dá desejo de se aconchegar. A sala é fria, muito fria. Imagina-se muito perto e seus olhos nela. Imagina a mulher magra entrando na sala do médico e os dois na sala vazia. Então, ele a beijaria enfiando as mãos entre suas pernas, abrindo com os dedos magros sua fenda úmida. Ela o beijaria com ternura, ele não. Ele a desejaria desesperadamente, morderia seus lábios, que sangrariam. Ela sabe que há muito ele não tem uma mulher.

Casulo





Dormiu mal à noite. Lembrava dele.

Esperou às onze horas para ligar. Ele acorda tarde, prefere trabalhar de madrugada.

- Feliz aniversário, meu amor! Estou saindo para te dar um beijo.

- Ok. Venha.

Ele abriu a porta sorrindo, meio encabulado. Ela o abraçou apertado, beijou suas faces.

Trazia nas mãos um envelope e uma caixinha.

- O que é isso?

- Para você. Abra com cuidado, pode quebrar.

Enquanto abria, ele sorria. Sacudiu a cabeça e disse:

- Meu Deus! Você não tem jeito... É muito bonito. Onde arranjou isto?

- Catei à beira mar.

Abriu o desenho: um casal enroscado.

Então, ela, que mal se continha, jogou-o para trás no sofá e beijou seus olhos, sua boca, suas faces. Gemia de prazer.
Aí, levantou e disse:

- Já sei, você tem que trabalhar. OK., nos vemos de noite ou vai dar para almoçarmos juntos?

- Não, querida, não vai dar.

Enquanto ela saía, ele pensava em como dizer-lhe que viajará no final do mês. Não gostaria de magoá-la, ao mesmo tempo não quer como companhia.

Pegou a caixa com o tubo de ensaio, observou aquelas conchinhas, que não são conchas na verdade, são casulos de alguma espécie marinha. Tão belas e tão frágeis. Lembram madrepérolas. Pensou nos presentes que ela lhe dá, sempre bonitos e frágeis, como ela. E no amor-casulo que os envolve.
E se entristeceu.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Um amanhecer





A xícara não estava na mesa como eu deixara na véspera. Sabia que ele havia acordado mais cedo e voltado para o quarto. Faz isto quando está aborrecido e não quer me ver.
Sinto alívio. Não precisarei dar o bom dia antes do meu desjejum. Gosto de ficar em silêncio ao despertar. Odeio quando dormimos juntos e ele me desperta encostando o pênis nas minhas costas, arfando.
Não desejo nada além de lembrar meus sonhos. Desconfio que me ajudem a viver melhor. Gosto de anotá-los.
Acabo de tomar o café, sigo para a frente da casa- o cão me aguarda. Troco a água do bicho, molho as plantinhas- tenho poucas, eu mesma, aos poucos, vou dando forma ao jardim.
Passava de dez horas quando o vi me espreitando da sala. Digo: “Bom dia!” Responde com um aceno.
Sei que teremos um dia longo e silencioso.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

Vil


Vil


“Tire as mãos de mim”... A música a persegue como um perfume.
“Ele era mil, tu és nenhum, na guerra és vil”...
Escreve para tentar exorcizá-lo. Há dias não aparece nos seus sonhos. Hoje, desde que o coração descompassado a despertou, tudo dói. Ela pensa nele e no outro, ambos a feriram. Impiedosos. Filhos da puta, pensa. Um dia terão o troco, pragueja.
Mais tarde, fará orações pedindo perdão a Deus. Queria ser herética. Não pode. Teme a ira divina.