quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Mini conto: Zampanô- Arquivo



Zampanô



Abre a porta. Está escuro.
- Zampanô, Zampanô...
Acende a luz, o cão sai correndo, desliza pelo assoalho.
- Zampa, que dia hoje. Ufa!... Precisava ver. O ônibus cheio, abafado, o trânsito engarrafado. Gente com cada cheiro...
Ele pula- desta vez em suas pernas.
- Calma, calma, senão vai desfiar minha meia.
Tira primeiro os sapatos, depois a meia calça preta- só usa esta cor- e a saia, por fim, a blusa de frio. Continua com uma camiseta de algodão e a calcinha.
Vamos lá, vou te dar comida.
Liga a TV, passa uma novela. Diverte-se fazendo críticas azedas:
- Zampa, esta mulher é insuportável, se você visse concordaria comigo.
Requenta a comida. Deita-se no sofá. A louça fica para amanhã, o banho fica para amanhã, a roupa jogada no tapete juntará amanhã.
- Zampa, hoje não vamos passear, não consigo, meu amigo...
O cão abana o rabo, enquanto uma mão magra alisa seu corpo.

Publicada antes em 10/09/10

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Miniconto: Madrugada

Foto daqui



Madrugada


O cão ladra à noite. Assustada olha o jardim. Nada. Olha o quintal. Nada. O cão late insistente.
Tranca a porta do quarto. Dorme encolhida.

Pela luz solar sabia que passava das nove. Procurou não demorar para descer. Abriu a porta da frente com cuidado. Nada mudara. Caminhou à direita no estreito corredor. Ali jazia um homem- a camisa xadrez aberta no peito, a calça rota mostrava um ventre inchado. Não sabe por que não teve medo. Passou ao lado do corpo com cuidado para não esbarrar no braço frouxo. Percebeu que respirava. Sentiu alívio.

Antes de ligar para a emergência, vestiu uma roupa de sair, passou batom e tomou o café da manhã na sala.

domingo, 21 de agosto de 2011

Quase menina


Mais de cinqüenta anos, feio, desajeitado, como ousaria se aproximar de uma mulher?...
No elevador, a filha do porteiro pergunta:
- Doutor, o Sr. está precisando de faxineira?
Quase menina, ainda, pele negra e tenra, dá para adivinhar o sexo rosa e doce.
- Pode vir amanhã às sete. Ela veio de shortinho curto, coxas gordas a mostra, cheiro de sabonete Phebo. Desta vez ele ousou, ela pedia.
Desde aquela manhã, o doutor, se ajoelha todas as terças e quintas no chão da cozinha. Abre as pernas da menina e se delicia com o gosto do seu sexo.
Melzinho.

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Miniconto: As pedrinhas transparentes

Aos domingos, na praia, catava pedrinhas. Preferia as transparentes.

Naquele dia, um homem se aproximou e lhe deu uma pedra escura. Gostou do rosto.

Seguiram pela areia lambida. Despediram- se com um “até domingo”. Ela sentiu- se diferente. Há muito não falava com homens.

Esperou ansiosa o fim de semana. Da calçada, viu o homem à beira- mar. Foi em sua direção, vacilante. Seguiram caminhando e pegando as pedras. Falavam pouco, ela desacostumada, ele só dizia o essencial.

No terceiro domingo, ele entrou em sua casa. Ela sabia o que viria.

Amaram-se no chão da sala.
Enquanto ele se vestia, pegou um copo de conhaque, colocou as mais belas pedrinhas dentro. Entregou- lhe. Ele não agradeceu, apenas a fitou com olhos surpresos.

Ao se despedirem, ele disse: “Até mais”. Sentiu-se estranha. Intuiu algo. Mas, e se ele voltasse à noite?

Nada sabia dele, nem o nome.

No domingo seguinte, esperou-o até a maresia envolvê-la e sentir frio.

Não se importa mais com as pedras, às vezes curva-se, pega uma, a observa na mão, então a devolve para o mar.

Talvez no próximo verão...

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

O casal

O casal

Os feirantes desmontavam as barracas, conversando alto. Ela vinha andando pelo meio das frutas, ouvindo as piadas, algumas para ela. Fingia não ouvir. Já havia comprado o que precisava, queria sair logo dali. O sol encoberto por uma nuvem densa. Do chão, úmido e quente, vinha cheiro de frutas maduras. Hora do almoço. Sentia fome. Escolheu um vaso de azaléias na banca de flores da esquina. Olhou para o meio da praça e o viu. Cumprimentava uma mulher: deu um beijo, tocou seu braço, depois enlaçou-a e seguiram em direção oposta. Seu coração saltou. "Parecem íntimos, vão almoçar juntos, com certeza". Parou com o vaso na mão. Ela, magrinha, pernas finas, vestia saia e blusa, elegante e discreta. Verde, a blusa – ela não usaria verde nunca. Ele, como sempre, de azul. Depois que os perdeu de vista, voltou a caminhar olhando para o chão. Desejou chorar. Entrou na Vila e veio o frescor da sombra, o cheiro de comida vindo dos vizinhos, os ruídos. Viu seu gato à porta. Entrou, largou as compras na pia, colocou água nas azaléias, lavou um pêssego e pensou que não há coisa melhor do que estar em casa e comer uma fruta fresca. Ele diria, se pudesse, que esta é a realidade.
A ela, resta sonhar.

domingo, 7 de agosto de 2011

O que você tem?

O que você tem? II


Desde que voltei notei algo diferente nela. Está mais silenciosa.
- O que você tem? Está tão quietinha...
- Nada, meu querido, gosto do silêncio.
Não enfeitou a casa com flores na minha chegada, nem fez meu prato preferido. Ela, sim, está mais bonita, há algo diferente, um distanciamento que a embeleza. Eu a flagro sorrindo, olhar distante, cantando levianamente pela casa. Não me conta mais os seus sonhos noturnos. Sorri quando pergunto: "Não sonhei nada, querido". Não encontro a resposta, me comportei como sempre, ela está acostumada às minhas viagens... Conhece as regras do jogo.
Há algo que não alcanço, é mais um mistério que me fascina.

Às três da manhã


Às três da manhã II


Às três da manhã, ele veio até nosso quarto, acendeu a luz e disse:
- Olhe para mim, é a última vez que me vê.
Sonada, mal ouvi. Mais tarde decifro ao ouvir um barulho ensurdecedor.
Levanto atordoada. Ele está caído no chão da varanda, a cabeça arrebentada, sangue por toda parte, cheiro de sangue. Pego no revólver, tento entender como foi. Corro desesperada pela casa. Grito por socorro: ninguém ouve, não há ninguém perto.
Os cães fuçam o corpo, lambem o sangue.
Sento no chão e choro desesperada.
Não preciso ter vergonha. Ele não está mais ali.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Chega de saudade ou Insensatez- um conto para Tom Jobim









Insensatez*


"Venha, estou te esperando. Desça a Montenegro, entre na terceira rua à direita. É um prédio antigo e pequeno no meio da quadra", disse ele.

Eu fui, como sempre. Obedeço aos homens.

Tinha pressa. As mãos suavam ao descer do ônibus no ponto indicado.

Lembro de um sonho em que deslizo pela Rua Prudente de Moraes deserta, desejando alar ao seu encontro.

Na esquina, um bar, mais à frente duas vilas. Adoraria morar no bucolismo de um espaço silencioso, com flores nos jardins. Com este olhar, me deparei com a vila ao lado do prédio dele.

Anoitecia.

Bati à porta, alguém tocava violão, abafando meus toques. Repeti as batidas com mais força. O som do violão cessou. Ruídos de cadeiras e vozes. Ele abre a porta no momento em que eu inspirei fundo, aflita, pensava o que fazer se não me ouvissem.

Havia homens espalhados pela sala, alguns no chão em almofadas, eu era a única mulher. Um deles me olhou com certo desdém, por pouco não me sinto intrusa, apenas porque os olhos dele me observavam e sorriam.

Minutos depois ficamos a sós entre copos e cigarros espalhados sobre o piano, chão, janela. A pequena sala, que dava para a frente do prédio, rescendia a cigarros. Comecei a juntar copos e cinzeiros. "Deixe, depois eu limpo", ele disse. "Limpamos agora, é melhor", respondi.
Eu precisava arranjar coisas para fazer. Não queria que ele percebesse minhas mãos frias e úmidas. Queria mais tempo para me acostumar à idéia de estar ali.

Na pia cheia de copos, garrafas vazias, um gato cinza de olhos azuis muito claros tentava subir.

Ele veio por trás e beijou minha nuca. Me desvencilhei caminhando em direção à janela. "Veja o Cristo, dá para vê-lo..."

Eu senti seu hálito de álcool e cigarro- um cheiro que me excitava.

Segurou meu rosto entre as mãos em taça, beijou meus lábios me sorvendo. De olhos fechados eu adivinhava o rosto que amei no primeiro encontro. Abri os olhos para conferir. Aos poucos fomos nos afastando da janela. Debruçando-se sobre mim, deitou-me no sofá, abrindo, com dedos ágeis, caminho para a minha entrega plena.

Um dia ele viajou, precisava ir a trabalho, disse. Não voltou. Eu chorava desolada. Enviei uma carta, por um amigo comum, onde dizia:
“Desde sua partida minha vida é só tristeza e melancolia. Não sei viver assim. Volte”.

Meses depois recebo um telefonema. Era Vinícius, dizia que tinha algo para mim. Fui até lá e ele me cantou, jamais esquecerei, esta música, como um recado do Tom:

“Chega de saudade

... Não quero mais esse negócio de você longe de mim,

Vamos deixar esse negócio
De você viver sem mim"...

Ele voltou, anos depois. Soube pelos jornais



* Este conto eu fiz para um concurso intitulado Bossa Nova do Estadão. Era preciso ter a frase de 'Chega de saudade'. Selecionaram vários, não lembro quantos. Não peguei nem resfriado, aliás... nunca pego resfriado hihihi
Acho que ficou muito carioca. Eu gosto, me sinto nos braços de Tom, nunca é demais sonhar.
E, pra quem não sabe, eu quase fui sua vizinha, morei no 97, Nascimento Silva, ele no 107, mas em 1970, quando fui para lá ele já vivia fora- nos States, acho. Eu amava o Tom. Ainda amo, pra mim não morreu, apenas partiu.

Um anoitecer



Foto daqui

Um anoitecer


Acorda, ouve os ruídos. Pensa no dia que começa. Não, que termina, lembrou.
Tomou um banho frio, deitou, sentia sono- despertou horas depois. A casa em silêncio. Olhou a fresta no chão da porta- escuro. Haveria alguém ali? Semidesperta tenta identificar sons mais distantes.
O cão late rompendo a lassidão do entardecer. Permanece na cama. Com a mão, ainda dormente, toca os seios, o plexo- reza. Com voz débil suplica forças divinas. Nela, não as encontra.