terça-feira, 28 de agosto de 2018

Dia de chumbo

Dia de chumbo

Cansada de escrever, fui até a janela olhar a rua. Uma chuva fina caía no dia cinzento. Há dias o céu está como chumbo.


Queria um dia de sol tépido- não suportaria o sol escaldante do verão. Ouviria pássaros. Invejo as aves, parecem volúveis.


A rua, quase deserta, me dá sensação estranha, lembra ficção científica. Onde estarão todos? É domingo.


Eu o vejo surgir no meu espaço visual. Está com um suéter amarelo, comprado numa das viagens.


Espero que olhe para cima com o coração disparado. Ele não olha, entra na livraria em frente ao meu prédio. Penso descer, forçar um encontro. Mas se não der tempo? Teria que me vestir, estou com roupa de dormir. Não sei vestir um casaco e sair. Decido esperar, olhos fixos na porta da loja.


Ele sai, traz agora um pacote nas mãos, tem um meio sorriso nos lábios, com certeza foi algo que disse para a moça do balcão que o fez sorrir. Tenho inveja da moça do balcão. Uma tristeza maior me abate. Será que não lembrará de mim?


Abro a janela, quero ficar mais visível. Segundos depois, ele me vê. Ele não sorri. Dá apenas um adeus.

Volto e me jogo no sofá chorando. O telefone toca. É ele. Diz: “Venha ver os livros que comprei, um deles é para você.”

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

O homem menos estranho

O homem menos estranho

Pega o primeiro ônibus que para no ponto. O vento corta seus lábios. Há dias não vê a rua, não quer.
O ônibus está abafado, mas gosta daquele cheiro de gente, tanto tempo não vê gente. Havia lugares vazios nos últimos bancos, mas escolhe o banco que tem o homem menos estranho e senta. Perna encostada na perna do homem. Nem viu a cara, não importa. A perna revestida de seda dá sensação de segunda pele, desliza. Sente prazer em roçar disfarçadamente no estranho. Fecha os olhos, inspira o ar misto de cheiros. Final do dia, cada cheiro uma história. De olhos fechados adivinha que o homem ao lado tem mulher e filhos à espera.

Faz isto sempre. Pega um ônibus qualquer, escolhe os dias cinzentos, aqueles que intui não suportará ficar tão só. Estar colada ao homem a esquenta. Ele não se afasta, pressiona mais a coxa, coxa apertada contra coxa. Finge não sentir a mão que sobe pela sua perna. Deixa que o homem a toque, se arrepia. Não consegue se mexer, é preciso dizer não. Abre os olhos, ele se aproxima e a beija violentamente, morde, machuca. Ela não sente prazer, nem medo, apenas vida.

Naquela manhã de domingo


Naquela manhã de domingo


Despertou com a mão dele em sua coxa, abria caminho entre suas pernas. Fingiu dormir. Ele continuou. Ela gemeu. Ele, então, colocou um dos braços sob o corpo dela e a enlaçou trazendo-a para mais perto. Abraçou-a com força.
Sentiu o cheiro de sono, o calor de sua nuca, conforto.
A luz que vinha da porta a cegava, moveu o corpo para que ele mudasse de posição. Ele, então, colocou o corpo sobre o dela. Apoiava-se nos braços e a beijava no pescoço. Abriu os olhos, trouxe com as mãos o seu rosto. Olhou cada traço, desenhou-o na memória. Este, que ela descobria, era pouco diferente daquele que ela sonhara.
Beijou os olhos que a olhavam ternos.
Pediu para que soltasse o corpo, deixasse o peso todo sobre ela. Queria sentir que ele era real. Queria inscrever aquele corpo no dela.

terça-feira, 26 de julho de 2016

Miniconto- A lembrança roubada


A lembrança roubada


Atravessa o longo corredor, passos lentos. Desconhecidos, recostados na parede, o cumprimentam no trajeto até o quarto da mãe.
Vacila na porta, enquanto alguns familiares, que há muito não via, estendem a mão e se afastam para que fique só. Ela está com um vestido cinza, meias e sapatos pretos.  Sente um calafrio e deseja cobrir-lhe. “Sinto muito frio no inverno”, parece ouvi-la dizer. Toca com a mão esquerda a perna magra, antes forte. Vem a imagem dela subindo a montanha com seu irmão no ombro, o pai um pouco à frente. Urge fugirem- é guerra. Toca-lhe a testa, debruça-se e a beija.
O irmão aproxima-se e o abraça. Neste instante, percebe que a lembrança foi roubada- ainda não havia nascido.



terça-feira, 23 de junho de 2015

Miniconto- As loucas de amor




Olha-se no espelho. O corpo magro deixa expostas as costelas. Passa a mão no peito antes delineado. A pele do rosto sem cor, o nariz maior. Há manchas espalhadas, "manchas senis".
Ele ri, vê os dentes amarelados e mal cuidados. Ri mais ainda. Tantas possibilidades, tantas mulheres o desejaram. Ele nada. Travado. Esperava mais. Ria, ria do amor delas. Todas loucas. Loucas de amor.
Ele se escondia, se fazia de morto diante do fogo feminino. Elas enlouqueciam. Desesperadas se jogavam implorando afeto. Uma delas jogou-se, literalmente. Olhou o corpo na calçada, a mancha de sangue e pensou: “Ela poderia ter feito isto de sua casa, a infeliz me complicou. A louca, se jogou nua, nem a roupa vestiu.”
Ele lembra bem, ela levantou da cama e disse: "Não aguento mais, vou me matar". Ele disse: "Duvido...", rindo. Ela abriu a janela e voou.
Ele não tem coragem para alçar voo. Terá que esperar a morte, assim, definhando.