sábado, 20 de março de 2010

Micro contos I

Prédio


1- Arranca as roupas em fúria- sai pelo corredor ainda adormecido.
O vigia a encontra caída no elevador. Ela dorme.


2-Tentou dormir, ruídos não a deixaram.
Choro, gemidos de prazer. Tapou os ouvidos. Nada. Passou a noite acordada- com ódio.


PS: São dois- poderia ser um, mas prefiro deixá-los como micros.

Mini conto 05- arquivo





O casal estrangeiro



Vieram do estrangeiro, se amavam, havia um elo forte- fizeram a mesma faculdade, tinham os mesmos amigos, três filhos e uma espécie de exílio voluntário.

Aos poucos ele foi se tornando quieto, irritado, nada do que dizia o interessava- o silêncio era cortante. Com os filhos o mesmo, não tolerava barulho, brincadeiras, erros- um dia bateu descontrolado na filha menor porque quebrou um objeto nada valioso. Ela sentiu ali que algo se rompera entre eles, não era mais o mesmo homem com quem casara.

Abriu um mercadinho, apesar do título de doutor, precisavam sobreviver enquanto o diploma não era revalidado. Dias difíceis vieram, ele não suportava o comércio nem a gente simples que atendia- foi saindo aos poucos. Ela, exausta, dava conta de tudo sem se queixar. Tudo era bem-vindo, tudo estava como deveria ser.

Na cama, o esperava perfumada, camisola limpa, leve. Sentia-se bela. Mas nada. Ele a ignorava com enfado, dormia pesado. No dia seguinte a mesma irritação.

Um dia, veio um amigo num belo carro buscá-lo. Voltou animado, de bom humor. Veio outras vezes, sempre muito gentil, foi conquistando a todos- menos ela.

Ele mudou-se para a casa da praia, não ficava longe, seria melhor para trabalhar , continuaria a obra inacabada. Ela, com sempre, achou uma boa idéia, foi ajudar na mudança, gostou da casa personalizada.
Ela ficou com as crianças, nos fins de semana iam ficar com o pai. Algumas vezes, ele viajava com o amigo- passear por ai. Ela não fazia isto há anos, mas não se importava, queria que ele estivesse bem.

Foi ficando cada dia mais evidente a forte relação entre os dois homens, não dava mais para negar- confessou estar apaixonado. Não ficou com raiva, nem ciúmes- se tivesse sido outra mulher não suportaria: o que ela tem que eu não tenho?
Mas não, sentiu alívio. Agora ela entendeu tudo.

Mini conto 04-arquivo


O gerente


Fez carreira no Banco estrangeiro, começou como boy- hoje é gerente. Casou, há três anos, com uma funcionária. Dorme um na sala, outro no quarto- já nem lembra a razão da separação, pelo desprezo dela, hoje, acredita que queria mudar da favela para o bairro nobre. Isto não o aborrece, só o mutismo que tomou conta dos dois.
Acorda ao amanhecer, gosta de ouvir os pássaros na mata próxima, sente-se pleno, inspira ar puro, sonha.

A mãe mora na esquina. Ele toma o café da manhã lá, vai para o Banco, volta para a casa da mãe, toma banho, janta e volta para casa.
A mãe, mulher forte e implacável, foi abandonada pelo marido quando ele era muito pequeno: “Aquele miserável perdeu tudo que tinha com mulheres, desgraçado”, diz todos os dias. Difícil esquecer a fome e humilhação que passou. Ele não tem raiva do pai, mal lembra, a mãe diz:”Igualzinho, tal pai, tal filho”. Não estudou, o dinheiro não deu, só o irmão virou doutor.

“Você é um incapaz, nem mulher conseguiu prender, merece o chifre que deve estar levando, aposto como ela tem outro, ninguém gosta de homem frouxo”, “Só chegou onde chegou graças ao seu irmão, este sim, é competente”.

Mesmo assim não sai da casa materna. Nos fins de semana fica à beira da piscina, que o irmão construiu, até que se canse da cantilena e o sol se ponha.
Está velha, a mãe. Anda com dificuldade, mas faz questão de fazer os pratos do mediterrâneo.

Domingo último, agora, estava tomando uma cerveja quando ouviu um barulho surdo de queda, seguido de um grito da mãe.
O coração bateu acelerado, sentiu calafrio, mas as pernas pesadas ficaram como estavam, recostadas na cadeira de piscina. Na cabeça, a mãe dizia em cantilena: ”Incompetente, igual ao pai”.

Micro contos 01-arquivo


Chagall


Estes micro contos eu escrevi para a "Casa das mil portas" que Nemo Nox organizou e tem feito sucesso até em Portugal.
Clique aqui e entre na casa.



Arranhado diz rindo: "Foi você". Amanhã não rirá, lanhado por mim.

Quis fazer das pernas tesouras- cortar- tua força venceu.

A mão na coxa me puxa, rude. Não há como dizer não.

Dói teu sexo, rasga. Finjo prazer para te esfaquear de costas.

O sangue espirrou, vi, desta vez, os seus olhos suplicarem.



Miniconto 02- A fera dorme









Acordou as cinco, fez comida para o marido e filho.
Ainda dormiam quando saiu. Ele, desempregado, bebe até tarde, quer sexo na marra. Ela finge dormir, mas quando começa a machucá-la cede. O filho deitado no colchão ao lado dorme como um anjo.
Agora ressona alto de boca aberta, o desgraçado. Vontade de acordá-lo no tapa, jogar água quente na orelha como fez a vizinha no homem dela.
Dá um beijo no filho e sai de fininho, prefere a fera dormindo.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Miniconto IX - Sábado passado





Em pé no salão abafado. Uma mulher se aproxima:
- Vamos dançar?
Antes que eu virasse as costas para meu colega, ele disse:
- Não vá, é homem!
Olhei e vi uma mulher. Fui.
Dançamos duas músicas, suávamos enganchados. Ela deu um beijo no meu pescoço. Senti tesão. Puxei-a para mais perto. Ela disse:
- Vamos para minha casa?
Enquanto eu pensava, emendou com um sorrisinho sacana:
- Pode levar seu amigo.
- Quanto é?
- Depende. Oitenta real, para os dois.
Atravessamos um pequeno jardim. A porta não queria abrir, precisamos forçá-la.
Lá dentro disse:
- Vou tomar um banho. A casa é sua.
Olhei em volta- não havia janelas. Sentamos no sofá forrado com um pano velho. Um não olhava para o outro. Apenas nos largamos ali.
Ela voltou de calcinha fio dental e cheiro de perfume.
Deitamos, os três, numa cama forrada com um lençol estampado com flores.
Não lembro mais nada. Só do calor.
Acordei na rede do canteiro de obras.

domingo, 7 de março de 2010

Miniconto VIII - A mãe de Maria das Dores




Dez da manhã. Dia abafado. Ela tenta se concentrar sobre o papel- precisa escrever.

Da cozinha vêm as vozes nítidas da mãe e da cozinheira.
- Sabe, Rosa, eu queria mesmo era morar lá onde vivia.
- Mas como a senhora vai ficar sozinha com mais de 83 anos?...
- Eu posso. Sempre vivi só. Gosto, estou acostumada.
...
Se pudesse iria para a casa do meu filho...

Ela para de escrever e diz do escritório:
- Nunca quis ficar aqui. Foi muito bem recebida. Não gosta de estar comigo, não gosta de mim.
- Estou cansada desta sua queixa. Estou velha.
- E eu estou adoecendo.
- Não tenho nada a ver com seus problemas. Desde menina é assim.
- Pois é, por issodeve ter a ver.
...
Levanta- se.
No banho frio deseja chorar. Não chora.
Sai. Volta duas horas depois.

Na mesa posta- a mãe almoça de costas para a porta.
Não quer comer naquela mesa- precisa sair logo dali.
Pede ao filho para acompanhá-la- precisa voltar à rua, pagar contas.

No sofá chora em silêncio- todos percebem, menos a mãe. Nunca a olha.

Vê, no espelho, os olhos inchados e borrados- naquele dia usou lápis preto.

O coração dói. Respira fundo. Com o filho toma um sorvete, um cappuccino. Ele caminha a abraçando. Sente-se amada.

No caminho de volta, compram pão e bolo, além de húmus, vasos, flores, para a casa ainda com cara de nova.

Seis da tarde.
A casa toda escura. Na penumbra a silhueta da mãe na varanda. Mexia em caixas, bolsas...

Um carro se aproxima- é a irmã. Desce dizendo em voz alta:
- Ela vai lá para casa, não quer ficar mais aqui.
- Que coisa feia! Não poderiam nos esperar?
- Ia deixar um bilhete, diz a mãe.
- Ela é assim, você sabe, completa a irmã.
- Muito feio isto- ela foi muito bem tratada aqui.

Na sala, caixas com os objetos da mãe que veio há quatro meses.
Olha a cristaleira com espaços em branco. Num canto da sala, caixas de papelão vedadas.

A mãe envergonha-se- desta vez é ela quem não a olha- prefere não ver o rosto traidor.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Mini conto VII- Madrugada



Foto daqui






O cão ladra à noite. Assustada olha o jardim. Nada. Olha o quintal. Nada. O cão ainda late insistente.
Tranca a porta do quarto. Dorme encolhida.
Pela luz solar sabia que passava das nove. Procurou não demorar para descer. Abriu a porta da frente com cuidado. Nada mudara. Caminhou à direita no estreito corredor. Ali jazia um homem- a camisa xadrez aberta no peito, a calça rota mostrava um ventre inchado. Não sabe por que não teve medo. Passou ao lado do corpo com cuidado para não esbarrar no braço frouxo. Percebeu que respirava. Sentiu alívio.
Antes de ligar para a emergência, vestiu uma roupa de sair, passou batom e tomou o café da manhã na sala.
Merecia.