quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Fragmentos




Fragmento*

Na janela
                                                                                    
Menina paralisada, atrás do vidro, sofria.
Agora, abro o vidro. Jogo-me alada .



 A palavra

 “Coisa de prostituta! Faz engravidar!”. Ressoa nela a voz aguda da mãe.
Aos sete anos, mal entendia a fúria da mãe. Sentada de castigo na mesinha de cabeceira- pernas soltas no ar- chorava. Pouco depois seguiram para outra cidade.
Não virou puta. Do ventre, antes seco, pariu um dia um filho bastardo, num aborteiro. Sentiu alívio.


Confissão

Menina, uniforme azul e branco, sapatos apertados de verniz, atravessava a praça. A freira puxava a fila indiana de meninas silenciosas - olhos no chão.
“Eu pecador me confesso, eu pecador me confesso...”, ecoava em sua mente. Segurando o riso, contava os passos olhando a perna torta da menina da frente.
- Padre, quero me confessar.
- Quais os seus pecados, minha filha?
- Tive maus pensamentos.
 Urgia rezar mais.



O pai

Quando o pai mandou, aos gritos, que se vestissem e pegassem as roupas todas, ela não entendeu o que acontecia.
Caminharam em silêncio até o ônibus. A mãe chorava baixinho, cabeça baixa, mãos ocupadas por sacolas cheias.
Menina ainda, segurou firme a mão do irmão.
Desceram da condução com o pai quase os empurrando.
Na porta, o avô disse:
- Te entreguei um, você volta e são três. Fico com minha filha, você leva as crianças.
O pai responde:
 - Se não os quer, então os mate.
É a última lembrança que tem do pai.




Embaçado

No banheiro embaçado minha mãe me banhou. Esfregava meu corpo franzino com força. Chorava sem parar. "Lave bem aí embaixo, senão fica com mau cheiro", disse me entregando uma bucha. Esfreguei até doer. Chorei sob a água até ela me gritar: Saia dai, menina! Chega!

A primeira vez que fui para a cama com um homem, diante da minha dor, ele disse: "Precisa ir a um médico, está machucada, não é normal".
Em casa, tomei coragem e me olhei com um espelho. Desde então gosto de me tocar. 
Minha mãe me odiaria se me visse com um homem. Gosto de homens, deixo que me conduzam. Fecho os olhos e deixo que me amem.


No magazine

Fica encantada ao se ver no espelho com o vestido da loja.
Dança até cansar.
Com uma tesoura faz pequenos cortes nas roupas penduradas.
Ao bater a porta, sabia que não haveria retorno.


O jantar

Dormia quando ele chegou de madrugada. Da porta, disse: Anda, tenho fome. Sonada, levantou. Encheu a panela com água, colocou no fogão e voltou a cochilar enquanto fervia.
Ele a viu de bruços na mesa, pegou a lata de óleo e a despejou sobre sua cabeça.
- Sua vaca, levante!
Ela obedeceu em silêncio. Chorando baixinho entrou no chuveiro quente. Lembrou da mãe. Chorou, mais ainda. Levou tempo para tirar o óleo, o ódio e o medo.
Quando saiu, ele já havia comido. Estava à sua espera, pronto.
Acordou às quatro, ele ressonava de boca aberta. “Desgraçado”.
Antes das cinco estava pronta. Mochila segurando a porta da rua entreaberta. Faca na mão.
Ela saiu de óculos escuros - amanhecia.

*Este conto enviei para o concurso Off-FLIP- nada :( enfim, é assim, não é?








4 comentários:

João Menéres disse...

Impressionante história !
O realimo ganhando forma atrvés da tua mão !...
Uma frase que parece uma canção "dark" :

> Levou tempo para tirar o óleo, o ódio e o medo.<

Tudo muito forte, uma bela escrita nos ESCRITOS.

E o problema da autoria da imagem no teu cabeçalho?
Não encontras forma de colocar o autor ?

Um beijo.

João Menéres disse...

Pois...nunca tinha olhado para a barra superior !

Está bem, LAURA.

Um beijo.

João Lenjob disse...

Música
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Artes Cênicas
Literatura
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Fotografia
Esportes Alternativos e muito mais.
Todo dia uma atração diferente comandada por mim no Castelo do Poeta, http://castelodopoeta.blogspot.com. Aprecie, comente, siga e indique.

Fiel Segredo
João Lennjob

Não tem como dizer que não mexo com você
E nem dizer que não gosta de mim
Porque sei que gosta e por isso evita
Sei que sente o que o sentimento exercita
Que teme provocar um encanto sem fim
E que sabe que penso somente em você.

Não tem como dizer que não mexo com você
E que nada em mim nem um pouco atiça
Você quer, tem coragem e diz que tem medo
Guarda em seu peito o mais fiel segredo
Sabe que em você tudo em si me enfeitiça
E que no final do meu caminho encontro você.

* e gostei de sua literatura. A gente podia combinar de você participar do Castelo.

charlles campos disse...

Belos e impressionantes fragmentos. Se tivéssemos um espaço engajado numa mídia literária, como acontece com os EUA e países europeus...

Não me recordo do nome da autora norte americana cujos pequenos contos foram publicados na revista Piauí. Os seus são melhores.

Ah! Também adoro o Javiér Marías.