terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Miniconto: De saltos altos

De saltos altos



Ela passa uma, duas, três vezes na calçada em frente. Quem vê pensa que é louca. Pisa firme com os saltos altos; o toc toc a denuncia. Traz algo nas mãos, de longe parece um terço, mas não é, conheço bem aquele cordão, ganhou de um amigo grego, diz que dá sorte. Olha alternadamente para a casa e para o fim da rua. Acredita que ainda não cheguei. Faz quase uma hora que está ali, andando de um lado para o outro. Conheço essa impaciência, ela quer me pegar de surpresa, está com o discurso pronto, adivinho o que diria se abrisse a porta ou me vislumbrasse atrás da cortina:
- Seu cretino, como foi sair com ela? Pedi tanto que se afastasse daquela vagabunda!
- Você está delirando, não saí com ninguém. Ficou louca?
- É você quem me enlouquece, cretino!
- Mas eu não saí com ninguém...

Não contenho o sorriso. Não nego o prazer em vê-la assim perdida, não diria desesperada, apenas perdida.
Ela, tão cheia de certezas...
Vejo aqueles olhos nos meus, esfomeados, querendo me decifrar, percebo seu desconserto.
É meu o próximo passo, ela sabe.
Logo a raiva se dissiparia. Nunca brigamos, basta fixar-me nos olhos dela e sorrir. Ela desmonta, chora, me faz jurar que nunca mais a farei sofrer. Eu não digo nada, não posso lhe dizer que também amo a outra.
Vejo suas belas pernas cobertas por meias pretas, os saltos altos. “Só uso saltos altos”- ela gosta de dizer.
Sei que se abrir a porta, beijarei aquele rosto até fazê-la sorrir. Não sobrevivo sem aquele sorriso.
Ela não sabe, apenas intui.

PS1: Se você já leu Desconserto, ai abaixo, verá que foi tirado daqui.
PS2: Este conto me lembra uma cena do livro de Javier Marias: "Coração tão branco". Quem o leu talvez lembre da mulher na calçada, ele na varanda.

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